Nos últimos sessenta anos assistimos no mundo ocidental a mudanças irreversíveis e que têm vindo a transformar de forma gradual, mas firme o papel da mulher na sociedade e na família.
A primeira delas foi o acesso a contraceção eficaz e segura. A mulher passou a poder controlar a dimensão da família. Foi entendendo progressivamente que podia ter o número de filhos que quisesse e quando quisesse. Podia mesmo não os ter.
Simultaneamente, o acesso generalizado à educação escolar permitiu às mulheres ousar entrar no mercado de trabalho para funções motivantes, com melhores salários e em áreas até aí estritamente masculinas como o direito, a medicina ou a gestão de empresas.
Estes dois fatores transportaram o papel da mulher na sociedade e na família de um ponto em que era totalmente dependente de um marido do ponto de vista económico e se via completamente envolvida numa teia familiar em que era o suporte doméstico do marido e de inúmeros filhos, para o ponto atual em que pode escolher com quem quer estar e em que modelo familiar.
Adquiriu-se autonomia e liberdade de escolha.
Do ponto de vista reprodutivo estas transformações têm conduzido a famílias menores, mais tardias e a uma nova forma de insucesso reprodutivo, aquele que decorre da irreversível perda de qualidade das células reprodutivas femininas – os óvulos – com o avançar da idade.
Acresce a tudo isto o aumento da longevidade, fruto da crescente eficácia da medicina. Vivemos até mais tarde, esperamos viver mais, o tempo é mais longo quando olhamos para a nossa vida.
Acreditamos por isso que se a medicina prolonga a nossa vida, prolongará a nossa fertilidade.
Não é verdade. A partir dos 40 anos a probabilidade de gravidez desce acentuadamente até se tornar muito baixa depois dos 45. Vários anos antes da menopausa.
À semelhança de outras áreas da ciência, a Medicina da Reprodução evoluiu muito. Os tratamentos são cada vez mais eficazes e seguros, com menor fardo terapêutico e permitindo obter uma gravidez com maior celeridade.
É hoje possível em Portugal concretizar projetos parentais, trazer filhos para situações familiares diversas, nomeadamente mono ou homoparentais.
Existe, no entanto, um número crescente de mulheres que se veem confrontadas com a impossibilidade de cumprir o projeto de ter filhos a partir dos seus óvulos. Quase todas com mais de 40 anos.
Por argumentos diversos:
1 - Porque só agora encontraram a companhia que procuraram persistentemente e após vários insucessos relacionais;
2 - Porque só agora encontraram um ponto de equilíbrio profissional contabilizável com o familiar;
Estes argumentos são inelutáveis e irreversíveis.
3 – Mas também porque acreditaram, a partir de exemplos de amigas, familiares e outros divulgados na comunicação social, que ter filhos depois dos 40 é tão simples como mais cedo. A medicina resolve.
Este último argumento tem que ser debatível, desconstruído, posto a nu.
A medicina resolve, mas a partir de algum ponto com recurso a óvulos doados, com perda do fio condutor genético que parece ser incontornável para muitas mulheres.
E essas debatem-se em frustração e culpa.
Culpa por uma decisão que pensam dever ter tomado dez anos atrás e que adiaram. Para algumas mulheres a opção poderia ter sido preservar óvulos. Mas há dez anos a congelação de óvulos era praticamente inexistente em Portugal e não divulgada. Para aquelas que teriam optado por uma solução monoparental, essa decisão obrigava a sair do país, porque só desde 2017 são permitidas gravidezes mono ou homoparentais na nossa legislação.
Para aquelas que adiaram por falta de condições profissionais ou académicas ou outras, a culpa, aliás responsabilidade pelo adiamento tem que ser assumida por quem difunde que é possível engravidar até aos 50 omitindo COMO.
Sempre que em contexto social ou familiar, ou na comunicação social se exibem gravidezes que a medicina tornou possíveis em idades tardias sem dizer COMO há um conjunto de mulheres que adia a sua família por mais dez anos sem saber com que consequências.
Frustração e impotência são sentimentos transversais a todos os casais que enfrentam problemas com a sua fertilidade. Frustração por não conseguir ter um filho, algo tão fácil e natural para todos os que os rodeiam e que para eles implica tratamentos complexos e penosos. Impotência por se confrontarem com a incerteza de êxito que a natureza lhes impõe. A medicina é cada vez mais eficaz, mas a mãe natureza tem a última palavra.
Frustração última e maior espera as mulheres que têm que olhar de frente a impossibilidade de ter um filho com os seus próprios óvulos. Para quem a única opção é recorrer a óvulos doados. Significa aceitar esse facto e fazer o luto do conceito de parentalidade como o de dar continuidade a uma linha genética ao qual todos estamos habituados e para que fomos preparados.
Mas pode ser também a oportunidade de contemplar a parentalidade como algo mais amplo – o projeto de acolher um filho para o ver crescer, acompanhar e apoiar até o ver autonomizar-se como um ser pleno e feliz.
Essa visão mais ampla de família é comum a quem tem filhos biológicos ou adotados e, em retrospetiva, todos dirão que é o maior e o melhor desafio de ser mãe ou pai.
Os projetos familiares estão a mudar e a tornar-se mais tardios.
É hoje inelutável e irreversível que um número crescente de mulheres vai querer ter filhos depois dos 40.
Não é possível tentar reverter processos sociais estabelecidos. É fundamental pelo contrário aceitar e contribuir para a divulgação e aceitação das soluções. Despi-las de preconceito e culpa. Sem julgar escolhas que decorrem da evolução social.
Mas que as escolhas sejam informadas.
Sabendo que é possível preservar óvulos cedo.
Sabendo que é possível ter filhos sozinhas, eventualmente dentro de um contexto familiar alargado.
E sabendo e aceitando que no fim da linha, se todas as outras opções forem ficando para trás, haverá diferentes soluções para ter um bebé nos braços que um dia dirá MÃE.
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